O andante do fim da tarde

Conto

Juan Costa Carreiro
5 min readMar 3, 2022
Photo by Birmingham Museums Trust on Unsplash

Você está prestes a saber a história recente de Pedro. Ele não é tal qual o rapaz da foto, esqueça isso. Há coisas que servem apenas à harmonia do espírito; em dados contextos, com certas circunstâncias, como esta. Importa que esta é a história de Pedro, e o que importa da imagem os teus olhos já guardaram.

Pedro trabalha em um supermercado bastante conhecido na cidade; apenas na cidade. Às sete horas sai de casa, ocorrem os devidos vai e vem do transporte público mais caminhada, trabalha, almoça rapidamente ouvindo música com colegas de serviço enquanto responde às dúvidas do gerente que vive ocupado e portanto aproveita o almoço de Pedro vez ou outra para tirar as dúvidas necessárias quanto ao estoque e aos produtos alimentícios vencidos do corredor de laticínios, depois trabalha o restante de seu expediente, ocorrem novamente os devidos vai e vem do transporte público mais caminhada, chega em casa e lida com o restante da vida que lhe sobra — o que geralmente se sabe bem… contas, alguns compromissos com amigos, o convívio familiar, as horas deitadas na cama em que se vê algum vídeo de até 60 segundos ou manda mais uma mensagem para confirmar se a garota vai poder ir ao combinado de terça, leva o cachorro que a irmã quis adotar para passear, acompanha o que os jornais diferentes trazem diferentemente de política para no fim votar por simpatia, trocar a resistência do chuveiro, procurar aquele meme para usar perfeitamente numa conversa passageira que arrastou a noite de quinta e uns miúdos do início da sexta… qualquer coisa que nos tire o ócio, que cale a faculdade de pensar. O infinito dá trabalho demais para se conhecer, ou querer.

Mas, um dia, e estava chovendo, Pedro se sentou à janela do ônibus. Quis, por tédio, pausar a música dos fones e seus olhos caíram profundamente na janela, na queda infinita e tormentosa de água que rebentava no vidro, nas gotas que escorriam ora mais rápidas ora devagar, na força dos movimentos que a ventania impunha às gotas, nas esquinas, nas placas, nas calçadas, nas pessoas que resenhavam sob o toldo dos estabelecimentos com o guarda-chuva suando nas mãos e, aos poucos, divagou. Surgiram-lhe na mente aquelas ideias incríveis que havia de pensar melhor depois e nunca mais se recordou, surgiram as paixões que haviam se perdido na memória, surgiu a fonte que sentava na infância tomando um sorvete de uva da praça enquanto pedia à mãe para despistar as abelhas, surgiu o desejo de aprender a surfar, o seu futuro empreendimento dos sonhos, a família que pensava em ter, a dúvida se seria bom pai do jeito que estava aprendendo a viver, e aos poucos os olhos deixavam de ver a janela para que a mente se ocupasse de todo — qual deve ser a cor do infinito? É fazer esta pergunta ao vê-lo que este se dispersa! — Aos poucos caía-lhe à mente em gotas a lembrança de si. Perscrutava aquela poça de si que começava a se formar no chão, chamou-a de memória; era tímida, disforme, pouca, mas guardava um brilho ardente, um desejo de si. Uma das gotas chegou a vazar-lhe o olho e logo foi engolida de volta pela boca, salgada, transparente, saudosa e fria. Naquela chuva, naquele ônibus, naquela volta para casa Pedro se reencontrou. Pela quinta ou quinquagésima vez, isso não se sabe, mas ao final verá que pouco importa, em verdade, muitas das vezes. Quis gritar ao mundo que tudo parasse, porque ele tinha se descoberto, e agora tudo poderia ser diferente. Ele podia ajudar a senhora na rua com o carrinho da feira a levá-lo até casa, poderia embarcar no primeiro voo ao Oriente Médio e dar paz ao espírito dos refugiados; ele tinha acordado, era hora de mudar.

Aos poucos a chuva foi se dissipando, e no céu se podia ver a decadência de um Sol que puxava atrás de si a carruagem da noite, e o céu se enchia de um cinza calmo e nebuloso. Uma cumulonimbus que tardava a chorar. Em dois minutos, desceu do ônibus e correu à sua casa. Não tinha dúvidas, trazia as boas novas escondidas no bolso para que pudesse soltar à família de uma vez feito um mágico que surpreende à plateia tirando uma bela pomba da manga. Bateu de maneira espalhafatosa a porta de ferro da entrada de tijolos e concreto da casa, correu as escadas sem corrimão que levavam à sala e chegando tomou a atitude de desligar a TV, para que todos o ouvissem, exceto sua prima que tomava banho enquanto a resistência não queimava de novo.

— Precisamos mudar de vida! Todos o olhavam com olhar de interrogatório, sem entender o que se passava. Nossos sonhos! Pai, vamos abrir a padaria que você queria, eu tenho juntado algum dinheiro do serviço, você dá mais um pouco e a gente pode começar aqui nos fundos da casa. Eu sempre vejo algumas receitas de pão na internet, vamos começar assim, você pode contar comigo! Assim a gente também consegue pagar a festa de quinze anos da Sofia! As coisas têm jeito! Eu sei agora que tem. Levantem, vamos, por favor!

Todos permaneciam sentados, exceto a Rafinha, que se levantou de abrupto, comemorando, que quase derrubou a chupeta.

— Ora, então me mostre onde está todo esse teu dinheiro, perguntava o pai, com ar ríspido.

Pedro sentiu a primeira quebra — Bem, na verdade eu não estou com tudo agora, mas posso te dar mais nos meus próximos salários e vamos crescendo juntos! Seu pai se levantou, caminhou devagar na direção de Pedro, tomou o controle de sua mão ainda ríspido, sentou-se ao sofá e disse, enquanto a TV ligava novamente — Vá passear com a cachorra. O restante da família olhava acuado e com pena da situação, sem ter palavra de conforto. Rafinha voltou a se sentar, triste e morna. A chupeta permanecia pendurada apenas pela pressão da boca.

Pedro foi ao seu quarto, sem palavras, pesava-lhe ao peito a culpa de sua idiotice. Mas doía-lhe ainda mais voltar a estaca zero, como se a Verdade não lhe tivesse pousado nua à frente dos olhos, e embora agora visse a Verdade como uma velha capenga e inútil de peles caídas, não quis negá-la. Quis fugir, ele e a Verdade, para um casamento eterno. Fugir deste mundo raso e parado. Precisava pegar o que tinha de mais íntimo e inalienável e andar, rumo à Verdade e a si mesmo, sob o holofote dos postes notívagos. Pegou alguns trocados que não serviam mais para fazer padaria, poucas peças de roupas, outras coisas que lhe faziam sentido ao contexto e se meteu pela porta dos fundos. Já era tarde, o céu se apresentava naquela última camada de azul antes do breu e as ruas incendiavam com o tom alaranjado dos postes. Precisava partir para um casamento pleno e eterno. A cachorra olhava, de cabeça inclinada pela brecha da porta, sabia do comando para passear.

Pedro acordou, mudo, solitário; a porta do quarto entreaberta. O cobertor pesava-lhe espalhado pela diagonal do corpo e a alma pedia afago. Virou-se para a janela, que soprava sobre as suas orelhas e deitava sobre o peito um ar matinal, e sobre a face crepuscular do Sol, uma nuvem agitava-se com os ventos, e assim soube que a Verdade o amava também. Mas o infinito se dissipa pela manhã.

Abençoados sejam os sonhos dos jovens! Antes do vício dos homens.

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Juan Costa Carreiro

Pretendo deixar aqui alguns poemas, ensaios e resenhas de coisas que possam nos interessar. Espero bons retornos de vocês. Abraços. Dixi et animam levavi!